Um filme que retrata a realidade nos âmbitos da miséria do homem e da violência que habita este cotidiano, precisa ir muito além de um soco no estômago, ele tem que abrir espaço para o pensar. E assim, nos chega “Mais pesado é o céu”. Trata de temas sérios e graves com a sutileza da poesia, com a intensidade possível na alternância de emoções. Entregas exatas em harmonia que, através da Arte, nos permitem abrir o terceiro olho. A medida encontrada por Petrus Cariry é tão justa e perfeita que torna esse filme necessário, contemporâneo e, absurdamente, imperdível. Não é à toa que ‘Mais pesado é o ceu’, que já circulou por pelo menos duas dezenas de festivais pelo mundo, antes mesmo de chegar às telas brasileiras, levou pra casa quatro ‘Kikitos’, no respeitável Festival de Cinema de Gramado, edição do ano passado. A saber, ‘Melhor Direção’, ‘Fotografia’, (assinadas por Cariry), ‘Montagem’ (Firmino Holanda) e, ainda, o ‘Prêmio Especial do Júri, para a atriz Ana Luiza Rios.
Vamos para uma breve sinopse, só para localizar: Ana Luiza Rios é Teresa. Matheus Nachtergaele é Antônio. Ambos se encontram em uma estrada, a caminho de uma cidade... submersa. No caminho, Teresa encontra e leva consigo um bebê, abandonado em um barco. A jornada dos dois segue por um brutal, árido e desesperançoso sertão, onde se aventuram, lado a lado, em busca de sobrevivência deles próprios e da criança. Num caminho de desafios infindáveis, encontram Vitória (Silvia Buarque), uma senhora frustrada em suas expectativas maternas, abandonada em uma casa perdida no meio do nada. Além dela, situações e pessoas que vão construindo uma trama onde o extremo da miséria humana salta aos nossos olhos e adentram nosso pensamento.
Tratar de mais detalhes nessa descrição, ainda que básica, seria reduzir o que a película propõe a um patamar longe do que se poderia imaginar. Tentar dizer mais na sinopse, uma agressão ao fazer artístico de uma equipe profissional de raro valor, que se uniu nesta produção. Este é o ponto. O olhar abrangente sobre a temática fez de Petrus Cariry, a coroa de si mesmo, em qualidade já demonstrada nas produções cinematográficas anteriores e que aqui, une o melhor do cinema, numa entrega incomparável. Marca um momento de retomada do Cinema Nacional, em contemporaneidade, síntese e evolução. O diretor dá ao público a condição de exercer, para além da sua inteligência racional, a sensibilidade do pensar pelas vias da emoção, do sentimento, da conexão com aspectos intrínsecos do ser humano no trato terreno.
A arte que alcança é a que se torna universal em sua expressão singular. O olhar de Petrus abre frentes que permitem a Ana-Teresa e Matheus-Antonio alcançarem o íntimo das interpretações. A fotografia do filme, quase integralmente nos apresentando extensas rodovias sem fim, a cortarem vastas paisagens – secas, dolorosas de ver, mas, cuja apresentação prega nossos olhos à grande tela -, amplia a compreensão de um mundo gigantesco, dramático e estático, ao lado do caminhar em pulso constante, dos dois personagens, em contraposição com essa imensidão. O ser torna-se nada, o momento do encontro com o que se busca, longínquo, senão impossível. Uma estranha esperança insiste em nos rondar, mesmo diante do cenário deprimente. A trilha sonora nos conduz, ao lado da ternura que habita os olhares de Ana e Antônio, se apegando às quimeras restantes. Se aproximam, se afastam. O silêncio do olhar que tudo vê, a defesa de uma permissão de liberdade mútua, os medos, o desejo e o afeto. Humanidade escancarada para conexão de todos os públicos. Os dois seres que levam consigo o bebê – não por acaso, sem nome – talvez, nem saibam o que realmente buscam, naquele quase utópico lugar que inicialmente vislumbram alcançar. Entre os poucos personagens do caminho, destaca-se Dona Vitória, com a força da veterana Sílvia Buarque, que faz da generosidade solidária uma estratégia de compensação, através do bebê e nos atiça para mais reflexões. Quão, maravilhosamente, bom é ver Danny Barbosa, na pele de outra presença no filme – Letícia. Deixo para vocês, a leitura de cada entrega que ela é capaz de nos trazer, em tão poucas cenas, em presença desta paraibana, que há muito quebra paradigmas vários, com sua grandeza artística que, entre outras produções, foi vista em ‘Bacurau’, destacou-se com seu curta ‘Pedra Polida’, fez história em Cannes e, ouso dizer, seguirá plena em muitas realizações.
Naquelas mesmas estradas, caminhões e camionetes em alta velocidade passam, indiferentes, pelo que vai se tornando um casal. Unido pela miséria, pela memória do que não se foi, pela sombra dos primeiros sonhos de infância. No drama áspero e intrigante, tudo é contraponto, diverso, afastado daquele submundo existencial que insiste em tentar sobreviver. O roteiro segue lúcido e sem arestas. E descortina a ampla visão, inclusive, através dos diálogos, que tantas vezes, se esbarram em perguntas ditas sem direito à resposta dos interlocutores.
O que a sua criança desejava antes de esboçar os passos da história e de seu palmilhar até aqui? Será que você consegue se lembrar com clareza? Teresa e Antônio, sim.
O que seria a liberdade do ser, partindo de algum lugar para uma “escolha” aventureira, traz à tona os perigos da vida, a fragilidade do ser, a impotência que se fortalece num cíclico contexto de buscas, sofrimento e degradação de sonhos perdidos num tempo que se viveu ou não. Paisagens, rios poluídos, cidades desaparecidas retratam os trôpegos personagens e seus próprios trilhos, submersos em passado, ancorados em presente, desprovidos de futuro.
A densidade do filme ecoa, através do envolvimento de cena, trilha, fotografia e, principalmente, dos personagens. Cariry deixa os atores livres para dissecarem seus personagens.
A atriz cearense, Ana Luiza Rios, teve sua estreia no cinema em 2010. Em poucos anos já tem extensa filmografia e faz ver, em ‘Mais pesado é o céu’ porque além de outros reconhecimentos de carreira, recebeu o Prêmio Especial do Júri 2023, em Gramado. Ela, que chega junto a uma geração que renova o cinema nacional, entrega talento e se lança, visivelmente, inteira na elaboração de Teresa. É através dela que nos vêm cenas do que mais fortalece esta produção. Ao lado do aparente movimento dos personagens pelas estradas, a estagnação e a inércia da vida de cada um deles, frente aos desafios... Num tempo em que já seria vida resolvida para alguns, ambos prosseguem nas dores primárias dos aprendizados do chacra básico, a luta pela sobrevivência, a corrida contra a fome... Tão básica quanto essa busca surge, então, a luta vívida em Teresa, diante de um mundo machista, execrável, de abusos sexuais. Se, de Antônio tem a ternura do homem quem ampara e insiste no cuidado com o “filho” (ainda que nos caiba a reflexão sobre os motivos dele, na acolhida paternal do bebê sem nome, que pode, metaforicamente, ser ele próprio, ou Teresa, para si própria), é ela que vai à luta para prover o trio. E é aí, que alcançando o impensável, dentro das ações para gerar algum retorno financeiro e material, a mulher encontra o lugar da prostituta. A esta altura, o bebê já terá nome de anjo...Teresa protagoniza momentos tão fortes que, seus próprios gritos são capazes de nos fazer descer goela abaixo, a realidade hipócrita e persistente através dos tempos. A esperança que move os passos iniciais de Antônio pelas estradas é a chance ganhar a vida com caranguejos, em seu destino almejado. Como os crustáceos, parece andar para trás. Senão em círculos...
Ah! O sempre Matheus Nachtergale! Tudo é pequeno quando tentamos descrever esse ser incrível. Pego emprestadas as falas de um texto que escrevi está semana: Nachtergaele é, seguramente, a melhor representação da atualidade, quando falamos de Arte feita com talento, entrega, comprometimento, verdade. Uma versatilidade estupenda nas grandes e diversas interpretações que parece vir do útero imaginário possível deste homem que ao lado de um masculino fazer latente, tem seu feminino bem resolvido a gerar no cerne da criatividade, um sentido existencial.
Faz do personagem o fio invisível a costurar cada um dos aspectos mencionados acima e que tornam esse filme parte de um universo sagrado, onde o artístico alcança o Olimpo. Onde o imaginário torna-se tão real em nós mesmos, como na quebra da quarta parede, pelo mesmo ator, na pele de seu cativante personagem da novela ‘Renascer’, em cartaz na telinha a adentrar nossos lares.
Aclamado, nesta mesma semana de estreia, com o Troféu Oscarito, em Gramado, Nachtergaele reafirma seu lugar de força no cenário cinematográfico. Fico pensando como Petrus deve ter visto o personagem ultrapassar sua, já grandiosa, proposta, através de Matheus. O ator fecha a película, sem fechar questão. Sangra nossa capacidade de julgamento, frente ao indizível, nos dá o direito de fazer justiça ou seguir, com a própria condenação.
Diz-se que quando um crime é investigado, evidências como o número de golpes por armas brancas fazem avaliar acerca de autoria feminina. “Antônio, brasileiro”, homem de sonhos e verdades cruas, desalentos e desilusões, em seu movimento, grita pela voz calada de todas nós.
A trama alcança, seguramente, a plenitude das intenções seja no tangente à existência humana, seus paradoxos e dualidades...Seja nas construções sociais, onde o homem rasga sua essência suportando, ou não, um universo de desigualdades, preconceitos, violência, exclusão... Seja em cada detalhe técnico, cuidadosamente, bem tratado, coerente, coeso e digno de cinco estrelas, em todas as críticas. Ainda que, no contexto atual das produções tantas e dos critérios que formatam os veículos do segmento, os respeitáveis profissionais do gênero tornem-se quase obrigados a não alcançar os dígitos, em suas publicações.
Sem mais. Corra aos cinemas!
Márcia Francisco
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